É extremamente raro ver um documentário vencer o prêmio principal de um festival de cinema. O italiano Fuocoammare (distribuído internacionalmente com o título Fire at Sea), de Gianfranco Rosi, não apenas conquistou o prestigiado Leão de Ouro de Berlim, mas também conseguiu a nomeação da Itália para o Oscar de melhor longa estrangeiro (em meio a uma seleção tão polêmica quanto a brasileira, por sinal). A questão norteadora desta produção diz respeito ao uso do cinema como uma forma de intermediar um debate necessário sobre a crise humanitária vivida na Europa. Neste sentido, a pequena comunidade de Lampedusa, no mediterrâneo, mostra o nível do drama – deixado de lado pela grande mídia: nos últimos 20 anos, mais de 400 mil pessoas buscaram abrigo na Europa através ilha – com mais de 15 mil mortos.
O documentário é composto por passagens extremamente tristes, que mostram pessoas morrendo ou lutando pela sobrevivência. Elas são necessárias para dar ao público uma olhar bem mais qualificado do que geralmente é repassado pelas grandes agências de notícia. Quando temos acesso a uma nota sobre um barco resgatado na costa europeia, dificilmente ela vem acompanhada de fotos, e já se criou um padrão de citar apenas o número de mortos. É nesse sentido que Fuocoammare busca se diferenciar, ao oferecer uma visão forte do caos generalizado, que atinge em cheio a sociedade. O diretor deixa clara a total falta de estrutura de Lampedusa a partir dos olhos de seus habitantes: dentre alguns dos selecionados por Rosi para mostrar como essa situação é tradada no dia a dia, uma criança, um médico e um pescador ganham destaque ao mostrar a experiência cruzada de realidades diferentes.
O governo montou uma espécie operação de resgate aos imigrantes ilegais, que chegam na ilha com acentuado quadro de desnutrição, além de vários tipos de problemas impensáveis, como doenças por conta do contato frequente com o óleo diesel, por exemplo. A questão em torno dos refugiados obviamente é muito mais complexa do que Rosi propõe discutir. Dentro de sua proposta, é interessante notar a forma como ele monta sua produção, mostrando como a comunidade se acostumou com a frequente visão da morte de pessoas que buscavam liberdade. Para uma experiência completa, no entanto, faltou uma autocrítica sobre o próprio papel das leis de abrigo da Itália, que ficam cada vez mais rígidas. Também cabe notar que esse ‘problema’ é derivado da instabilidade da política internacional na África e no Oriente Médio – que são citados de forma superficial.
Por conta disso, fiquei com a clara impressão de que Fuocoammare cumpre seu papel de alertar para a questão dos refugiados ao mesmo tempo que falha ao oferecer uma perspectiva – ainda que negativa – sobre o caso. As tomadas nuas e cruas são fortes e relevantes, mas sem um diálogo com o público fica difícil pressionar para a mudança de leis que excluem cada vez mais as pessoas apresentadas no filme. Fuocoammare já aparecia como franco favorito aos prêmios de melhor documentário desta temporada. A grande pergunta que fica diz respeito a possibilidade da Academia indicar o longa ao Oscar de filme estrangeiro – que seria um marco histórico, sem sombra de dúvida.
NOTA: 7/10
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