Que a Coreia do Norte é o país mais fechado do mundo, todos sabemos. Suas técnicas de propaganda já foram expostas diversas vezes, mas não de forma tão avassaladora e profunda como V paprscích slunce (comercializado mundialmente com o título de Under the Sun). Com coragem de sobra para enfrentar um regime feorz, diretor russo Vitaliy Manskiy expõe definitivamente a realidade das armações cotidianas do país. Manskiy foi convocado para participar de um documentário que filmaria a vida de uma menina norte-coreana prestes a entrar na Sociedade das Crianças, organização que faz parte do controle ideológico pregado no Juche. O intuito é ensinar desde cedo a respeitar o líder supremo e seus antecessores, através de histórias manipuladas e falsos contos heroicos. O diretor russo acabou se desentendendo com os oficiais norte-coreanos, que insistiam em trocar constantemente as cenas do filme para deixar perfeito para o espectador, e cancelou o projeto. Antes da saída do país, seus cartões de memória e suas filmadoras foram recolhidas pelo governo – que não imaginava que o diretor teria a ideia de usar um slot secundário para fazer backup de boa parte de suas gravações. Com o material precioso nas mãos, o mundo pode ter acesso a um documentário completo e impactante.
Não é necessário nenhum narrador para tentar explicar o que assistimos. A interferência do diretor ocorre em momentos-chave, para explicar as armações feitas pelos norte-coreanos através de legendas. A captura das imagens segue um padrão assustador: Manskiy só podia registrar locais autorizados pelo governo. Com isso, todas as cenas mostram pessoas se curvando diante de estátuas e fotos de Kim Il-sung e Kim Jong-il, por exemplo. A necessidade constante de mostrar a lei e ordem contrasta com as sucatas soviéticas reaproveitadas na rua – motivo de vergonha para qualquer país, menos para a Coreia.
A menina que protagoniza o filme é representada como uma criança sem futuro, nos olhos de nossa sociedade ocidental. Seu papel para o Estado é de se casar, ter filhos e trabalhar nas várias indústrias que tentam sustentar a economia interna. Portanto, sua devoção deve ser comprovada desde a infância, eliminando qualquer resistência. O grande trunfo de Under the Sun é desafiar o espectador a captar mínimos detalhes: a televisão da década de 1980, com transmissões de programas estatais e os olhares cansados dos cidadãos na estação de trem mostram um pouco dos horrores escondidos por trás da propaganda.
Várias são as perguntas sem resposta: será que os pais da menina são atores? Mais: o governo irá tomar alguma atitude para prender, torturar e matar os oficiais que deixaram Manskiy ir embora com as gravações? A impressão final é de que a Coreia do Norte vive em um mundo de enganação. Mas não apenas para o exterior, e sim dentro do próprio país. A passividade dos habitantes, amarrados desde cedo em uma ideologia que sufoca o diálogo e o pensamento desde o berço fica clara. Por isso que quando o diretor pede para a menina citar um poema, a primeira passagem em sua cabeça são linhas de uma cartilha tradicional do culto a personalidade. Por isso e muito mais, Under the Sun causa espanto e indignação – e lembra para todos nós a importância da liberdade e do direito a livre expressão. Único e marcante, escancara a teatralização da banalidade.
NOTA: 8/10
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