Silence (Silêncio, no Brasil) não é a obra prima que esperávamos de Martin Scorsese. Seu apaixonado projeto de trinta anos é muito interessante, mas um olhar apurado na história original de Shûsaku Endô e até mesmo nos outros filmes sobre o mesmo tema nos mostram que o diretor teve que hollywoodizar ao máximo sua produção para conseguir os quarenta milhões de dólares necessários para bancar as despesas. Ainda assim, o longa chama a atenção pelas questões levantadas sobre as diferentes percepções da religião católica, através de um destaque para a iconografia.
O desafio de adaptar o livro de Endô – por si só – já merece louvor, já que a história é de lenta progressão e com uma enorme necessidade de construir uma forte imagem de seus personagens para que o gran finale tenha forte impacto emocional no leitor. No livro, as cartas escritas em território japonês e enviadas para a Europa têm papel fundamental; no filme, são recursos secundários da estruturação narrativa. Junto de Jay Cocks, Scorsese monta seu roteiro a partir do pedido dos padres Rodrigues (Andrew Garfield) e Garupe (Adam Driver) para uma missão nipônica. Eles querem notícias do Padre Ferreira (Liam Neeson), que nunca mais entrou em contato com a Igreja. A última correspondência dava conta de uma implacável perseguição do Xogunato Tokugawa aos padres e fiéis. Rodrigues e Garupe encontram Kichijiro (Yosuke Kubozuka), que viu sua família assassinada por adoração a Cristo. A pergunta que move a introdução é simples: o que aconteceu com Ferreira? A partir da solução deste caso, Scorsese convida o espectador a analisar a pregação no Japão, seja a partir da relação do oriente com as imagens e símbolos ou pela tentativa de conseguir a salvação pela oração.
A direção de fotografia de Rodrigo Prieto é sólida o suficiente para receber pelo menos uma indicação ao Oscar. As cenas dentro dos vilarejos na floresta são ricas em detalhes: a partir do belo 35mm o clima de tensão é criado a partir de tons mais escuros – já que boa parte do filme explora o esconderijo dos padres no território japonês. Com ótimas tomadas em uma densa neblina, a ideia é pensar sobre a existência de Deus a partir do olhar para a natureza (em uma notória homenagem ao clássico Ugetsu monogatari – Contos da Lua Vaga – , de Kenji Mizoguchi). A iconografia e o apego a cruz e as imagens de Cristo tem dupla função: para os fiéis, são motivo máximo de adoração; para os governantes, instrumentos utilizados para testar a fé. Essa dualidade é geralmente retratada com muito sofrimento, e Scorsese não faz nenhuma questão de afugentar essa justaposição em seu filme.
O ponto negativo do filme está na linguagem. Até que chega a ser compreensível o fato dos protagonistas trocarem o português pelo inglês, mas pergunto-me se Scorsese realmente moldou seu filme com essa ideia ou se a Paramount obrigou a colocar rostos familiares no elenco para facilitar sua distribuição. A sintaxe da língua inglesa utilizada pela produção é péssima – sem nenhuma preocupação em tentar criar um diálogo que pelo menos se aproximasse do século XVII. Pior ainda é notar a mistura deve confundir até mesmo os anglófonos: Padre é mantido durante toda a exibição, mas Deus é mencionado apenas em passagens relevantes, com a variante em inglês predominando na rodagem. Os problemáticos sotaques de Garfield e Driver também não auxiliam em nada. Esse é o tipo de decisão que compromete a fiabilidade histórica do filme. Na década de 1970, o longa japonês Chinmoku, de Masahiro Shinoda, optou pelo uso do inglês, mas de acordo com Stuart Galbraith essa decisão ocorreu apenas pela pressão do estúdio para distribuir o filme nos Estados Unidos. Em 1997, Os Olhos da Ásia, filme português dirigido por João Mário Grilo, apesar de não levar ao pé da letra o livro de Endô, teve sucesso pelo instigante roteiro.
Infelizmente Silence paga pelos absurdos erros de promoção e distribuição da Paramount. O interesse em querer encaixar o filme na janela de dezembro e janeiro (justo a mais atrativa por conta das premiações) colocou o longa em disputa direta com vários outros concorrentes ao Oscar. Como o tema é complexo, os produtores perderam uma boa chance de promover seu filme em prêmios como o Globo de Ouro pela loucura de enviar os screeners somente após a primeira exibição oficial, que ocorreu no Vaticano. Se tivesse seu lançamento em outubro ou novembro, Silence seria o destaque semanal – o que não foi o caso. Scorsese transmite uma mensagem final de dor e sincretismo que nos remete a clássicos como The Last Temptation of Christ, mostrando lapsos de sua genialidade em um filme que deve ser apreciado pelo menos duas vezes para ser compreendido em seus vários paradoxos.
*Silence estreia no Brasil no dia 2 de fevereiro.
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NOTA: 7/10
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