Quando mais de 100 pessoas abandonaram uma das sessões de The House That Jack Built (A Casa que Jack Construiu, no Brasil) em Cannes, Lars von Trier sabia que havia atingido seu objetivo de despertar repulsa ao horrorizar o público com cenas fortes e chocantes. Apesar destas cenas comprometerem parte da estratégia de distribuição do filme – extremamente restrita por conta da classificação indicativa – o resultado final é muito interessante quando se tem em conta a linha autoral que o diretor busca seguir.
Jack (Matt Dillon) tem transtorno obsessivo-compulsivo. E sua compulsão é matar pessoas (especialmente mulheres). Durante o filme, dividido em cinco incidentes, existe um diálogo de Jack com um interlocutor (Bruno Ganz), que é extremamente válido para notar o nível da doença de Jack e dar bons insights sobre a trama.
Toda a estrutura do roteiro é bem condensada. Sim, estamos falando de um filme de duas horas e meia de duração, e obviamente algumas cenas são arrastadas e cansativas. A divisão em incidentes, anunciada logo nos minutos iniciais, cria um nível de tensão alto e deixa a pergunta após cada assassinato: “será que o próximo será pior?”.
von Trier não tem medo de explorar a mutilação e o assassinato brutal de crianças. Só o dinamarquês teria condições hoje em dia de conseguir financiamento e ter coragem suficiente para quebrar dogmas existentes no cinema. O nível das conversas entre os personagens de Dillon e Ganz é altíssimo, com verdadeiras aulas de história e um poderoso uso da retórica criativa que talvez passe despercebido pela atenção do público estar voltada para a digestão das cenas anteriores.
É fácil julgar um filme destes e classificar como um desperdício de tempo por não concordar com a matriz teórica de um realizador. Fiquei surpreso, por exemplo, ao ver colegas estadunidenses massacrarem o filme pelo uso da violência excessiva. Acredito que o espectador que vai ao cinema sem conhecer o homem por trás desta produção realmente pode ficar perturbado com o que testemunhará – e isso talvez explique o alto índice de abandonos nas salas – mas acredito que é possível analisar friamente esta produção (e até mesmo estabelecer um comparativo direto com a carreira de Von Trier) a partir do excelente trabalho técnico que envolve o filme.
A falta de conexão com a realidade, o misterioso interlocutor e a transformação de um homem inteligente em um assassino monstruoso devem ser levadas em conta para situar o excelente desfecho do filme. Provocativo – dentro de um inferno pessoal criado por von Trier, The House That Jack Built é exatamente o tipo de filme que eu esperava assim que tomei conhecimento do projeto. Alguém acreditava que o diretor iria pegar leve?
NOTA: 7/10