Dziga Vertov passou boa parte de sua juventude escrevendo textos sobre o poder de uma boa edição no cinema – ressaltando a necessidade de cortes com significados. Dentre todas suas teorias, a linha de edição simbólica se destaca: para Vertov, um filme dramático pode ser ainda mais efetivo caso saiba conciliar sua narrativa com elementos aleatórios – mas que, dentro do contexto apresentado, ressaltem pontos que abram para a subjetividade de seu espectador. Julieta, recente lançamento de Pedro Almodóvar, oferece uma história que pode percorrer vários caminhos de interpretação até sua possível solução. Mas o mais impressionante é que o diretor espanhol abusou da técnica de recortes para criar um filme pesado – mas cheio de vida, com a assinatura de um dos maiores realizadores de nossa época. Por ser um filme extremamente complexo, faço um aviso de possíveis spoilers ao leitor.
Após um erro estratégico com Los amantes pasajeros, Almodóvar volta ao estilo que tanto lhe premiou: o drama puro centralizado em uma forte figura feminina. Neste caso, Julieta é interpretada por duas atrizes de alto calibre: Adriana Ugarte e Emma Suárez dão vida a Julieta jovem e velha. Tais adjetivos – ainda que possam soar vazios – têm explicação tão logo descobrimos o sofrimento que desperta no coração da personagem principal ainda na sequência inicial. Nos dias atuais, Julieta está prestes a se mudar para Portugal, seguindo seu companheiro (Darío Grandinetti). No entanto, após encontrar Bea (Michelle Jenner) em uma esquina de Madrid, seus planos mudam. Amiga de infância de Antía, filha de Julieta, Bea revela que a moça tem três filhos. É então que descobrimos que mãe e filha não se comunicam há doze anos – e que tal fato tem forte influência no emocional de nossa protagonista. São as memórias que constroem a narrativa do filme. A jovem Julieta da década de 1980 tinha um estilo punk, esbanjando charme em suas aulas de filologia. Ela conhece seu futuro marido em um trem, logo após testemunhar o suicídio de um passageiro. Seu casamento com o pescador Xoan (Daniel Grao) envolve passagens de ciúmes, sexo e cumplicidade. A partir de uma base sólida, Almodóvar busca alinhar a trama ao mistério que toma conta do filme: por qual motivo Antía não quis mais falar com sua mãe após atingir a maioridade?
Na esmagadora maioria dos casos de filmes cujo personagem principal é interpretado por dois ou mais atores, não existe a mínima preocupação com a transição – que é um elemento fortíssimo na estrutura narrativa de um filme. Com uma cena meticulosamente planejada (na qual a filha seca o cabelo da mãe com uma toalha), Almodóvar consegue fazer a jovem Julieta de Ugarte se transformar na Julieta de Suárez. A concepção de mundo de cada uma delas é bem definida: ainda jovem, Julieta acreditava que poderia conquistar o mundo, e no romance com Xoan vê a chance para ser feliz com uma família; mais tarde, já desiludida, enxerga em sua filha a parceria para seguir adianta até sua morte, ainda que sem rumo. Os flashbacks apenas ressaltam o quanto a própria mulher muda de personalidade nas várias fatalidades que ocorrem em sua vida. O ‘desaparecimento’ de Antía, portanto, é a ponte para uma redescoberta de seus próprios objetivos pessoais. Quando ela vê Bea, descobre que uma mãe jamais esquece de uma filha – especialmente pela parceria desenvolvida durante complicados anos divididos pelas duas.
A trilha de Alberto Iglesias – isolada – já mereceria prêmios e aclamação. Mas é dentro do mundo conturbado de Julieta que ela ganha significado, acompanhando tomadas extremamente difíceis. O filme tem como base três pequenos contos de Alice Munro – que mostram a paixão do diretor por histórias marcantes, cheias de conteúdo. A sensação de ver os créditos de Julieta rolarem é a de uma clara mensagem para encaixar o drama apresentado dentro de nossas próprias vidas, e discutir sobre mágoas, ódio e rancor.
Esteticamente maravilhoso e soberbo pela forte influência da fotografia de Jean-Claude Larrieu, Julieta é um dos melhores filmes da carreira de um ícone que influencia diretamente pelo menos duas gerações de cineastas mundo afora. Tem tudo para ser um absoluto sucesso no circuito arthouse mundial – e aparece fortemente como uma opção para prêmios estrangeiros. Impecável e maduro.
NOTA: 9/10