Nicholas Hitchon (E) – que aparece na série de documentários “Up” – quando tinha 14 anos, em 1971. Ellar Coltrane (D) interpreta Mason aos 18 anos de idade em “Boyhood,” dirigido por Richard Linklater.
Um desleixado olhar no espelho vê o que bem entender.
Quando este espelho se chama “Boyhood,” ele vê as maravilhas de uma obra prima através de um roteiro sem foco que conta como uma cativante criança de seis anos em sua fase pré-verbal cresce em tempo real diante das câmeras para se tornar em um cativante – e um pouco mais verbal – colegial que gosta de fotografias, cogumelos mágicos e “do momento”.
Outros espelhos talvez não vejam esta obra prima. E outros espelhos até podem ver algo parecido com um mágico que só sabe um truque – um truque muito elegante – que busca filmar a vida de um menino de forma intermitente ao longo de doze anos consecutivos com os mesmos atores escalados para interpretar o menino, e seus pais e sua irmã. Mas seria este o mágico errado? Se Richard Linklater vencer o Oscar dentro de algumas semanas por dirigir “Boyhood,” será que alguém deveria arrancar ele de suas mãos e entregá-lo a Michael Apted?
Os críticos de cinema foram quase unânimes ao elogiar “Boyhood”. E é este aspecto longitudinal que eles se encantam – a “energia pura”, como escreveu Anthony Lane no The New Yorker; é a revelação de que os filmes “podem tornar o tempo visível”, como David Edelstein cita na New York Magazine (e é difícil imaginar que os críticos usariam estes superlativos caso os atores apenas tivessem passado pelo processo de envelhecimento por conta das maquiagens ou outras técnicas cinematográficas para entregar o mesmo resultado).
Muitas destas críticas positivas discutiram rapidamente outras formas de abordar esta estrutura longitudinal. Neste caso, o próprio senhor Linklater aparece com sua série de filmes “Before”, que tratou dos romances de um casal por duas décadas. Ou Francois Truffaut, que escalou um único ator para interpretar o protagonista em cinco filmes, também por duas décadas, iniciando com “The 400 Blows,” quando o personagem do filme tinha 12 anos e o ator 14. A lembrança mais frequente tem sido a do senhor Apted e sua série “Up”, oito documentários que tratam sobre a vida de 14 britânicos a cada sete anos – iniciada quando os escolhidos tinham sete anos, mais de meio século atrás. A última produção, lançada em 2012, mostrou os homens e as mulheres – mas agora com 56 anos de idade. Agora fale sobre a tal energia. Somente um deles – um documentarista, por acaso – deixou o projeto.
As críticas de “Boyhood” mencionaram a série “Up” do senhor Apted em comentários que variam do respeito ao descaso – como quem diz: “nada demais para ver aqui, amigos”.
Mas a verdade é bem diferente: Apted é o verdadeiro revolucionário, enquanto Linklater é uma espécie de cortador de grama.
É verdade que um trabalho é ficção e o outro é um documentário, mas é também verdade que isto é fazer uma distinção que não faz diferença.
“Eu acho que o que divide estas duas coisas é uma linha muito fina”, disse Nicholas Hitchon, um dos jovens de 7 anos convidados para participar do projeto “Up”, e que agora é professor de engenharia na Universidade de Wisconsin. Eu concordo com o senhor Hitchon pelo motivo que eu queria ter a mesma perspectiva de alguém que, assim como Ellar Coltrane, o menino Mason em “Boyhood,” deparou-se consigo mesmo dentro de um aquário prismático antes de ser velho o suficiente para realmente entender o que aquilo significava.
O senhor Hitchon ainda não viu “Boyhood” — ele diz que não conseguiria ir ver por conta própria — mas ele viu Coltrane no programa “Conan” e ficou impressionado com o relato de como Linklater começou a filmar cada segmento anual de seu filme. O diretor entrevistava Coltrane e perguntava o que ele havia feito desde a última vez que eles haviam se encontrado para as filmagens, para então incorporar os elementos da vida de Coltrane na vida do personagem Mason e na história de sua família.
“Isto está a poucos metros de onde nós estamos”, disse Hitchon. “No nosso filme, nós entregamos a realidade — eles entregam a ficção.”
Hitchon geralmente é perguntado sobre o quão preciso foram os retratos que “Up” fez de sua vida, e sobre como Apted controla o que deve ir ou não no corte final dos filmes, levando em conta as extensas entrevistas que ele conduz. Hitchon sempre responde que “ele (seu retrato) não é exatamente a minha realidade, mas é a realidade de outra pessoa”.
Mason, por sua vez, também é a realidade de outra pessoa — seja a de Linklater, Coltrane, ou até mesmo a nossa. A “realidade de outra pessoa” é um tema comum nestes projetos longitudinais, já que eles buscam se preocupar com pessoas normais vivendo vidas normais. Eles buscam deixar de lado “os grandes momentos” para ir atrás do cotidiano, entendendo que é ali que a vida de desenrola, que é ali que o particular passa para o universal, algo que é irresistível por conta destes documentos vivos. Então não há nascimentos, mortes, o primeiro beijo, provas, formaturas, doenças ou acidentes. Somente retratos de seres humanos que se formam inexoravelmente diante de nossos olhos nas telas.
“Boyhood” coloca isto de maneira muito bonita desde seu primeiro quadro, uma tomada de nuvens brancas bem fofinhas que passam perto cobrir totalmente o céu azul que desponta. A câmera então corta para Mason, que está deitado na grama com um olhar de sonhador direcionado para o alto, piscando lentamente com seus cílios bem definidos acima de suas suaves bochechas. É uma longa cena recheada com a promessa de que o céu é o limite para os jovens. Para reforçar este ponto, a trilha sonora tem a música de Coldplay: “Look at the stars, look how they shine for you.” Para reforçar ainda mais, na tomada seguinte observamos a mãe de Mason, que passa por uma placa que diz “Dia da Aspiração” (no sentido figurado).
“Seven Up!” (o primeiro da série de documentários) também tem sua própria versão do Dia da Aspiração, e, apesar da falta de trilha sonora, assim que chegamos a “56 Up” (o mais recente), Joni Mitchell nos entrega uma boa: “I’ve looked at clouds from both sides now.” No primeiro documentário “Up”, as crianças respondem a questão do diretor sobre o que cada uma delas queria ser quando crescer. O objetivo do filme na época — profético, já que não se discutia a continuação do mesmo – era considerar a máxima jesuíta “me dê uma criança de até sete anos e eu lhe entregarei um homem”. Tony diz “eu quero ser um jockey!”; Neil diz “eu quero ser um astronauta, mas se não conseguir ser um astronauta quero ser um motorista de ônibus”; Symon diz “antes de ser velho o suficiente para ter um emprego, eu quero andar por aí para ver o que eu arrumo”; Lynn diz “eu vou trabalhar na Woolworth”; Nicholas (professor de engenharia) diz “quando eu crescer eu gostaria de descobrir mais sobre a lua e aquilo tudo”.
Os entrevistados de “Up” são muito fluentes aos 7 anos — e consideravelmente menos aos 14, quando começa a época de suspeitas, ressentimentos e inseguranças dos adolescentes. Em “Boyhood,” Mason nunca diz muito. Fica para o espectador capturar as pistas para descobrirmos quem ele realmente é. Quando ele está perto dos 16 anos, ele diz: “eu não costumo tentar vocalizar os meus pensamentos, sentimentos ou qualquer outra coisa. Eu não sei, nunca soa bem. As palavras são estúpidas.”
É aqui que “Boyhood” se aproxima de seu final e onde, na arca da vida, a série “Up” recém começou a preparar a pintura de seu quadro. É onde “Boyhood” sai de cena, sem chance alguma de recuperar o tempo. Mason, ao iniciar a faculdade, apenas começa sua jornada; os 12 anos que nós vimos marcam apenas o início. É improvável que algum dia veremos sua vida alternar dentre várias possibilidades de ser alguém e ver também as portas fecharem silenciosamente – o acréscimo de pequenos triunfos e decepções que compõem a maioria das vidas.
Nós vemos tudo isso em “Up.” E é isto que constrói todo o poder emocional desta série. Tony foi um jockey por cinco minutos, e sua incapacidade para conseguir desempenhar sua paixão fica evidente em seu rosto mais de cinco décadas depois. A exuberância juvenil de Neil sofreu um grande golpe por não ter conseguido entrar em Oxford, e deu lugar a uma grande fragilidade mental. Em “Boyhood”, esta fragilidade fica a cargo de mãe de Mason, interpretada por Patricia Arquette, que tenta dar sequência em sua vida após Mason deixar seu ninho. “Você sabe o que vem pela frente? Meu funeral!”, ela lamenta, na versão de Linklater do trágico monólogo “All the world’s a stage” (de William Shakespeare).
A vida real não está sujeita a alertas de spoilers. Ela acontece, não fica esperando para que a arte a abocanhe. Ocorreram dois funerais na família “Up” desde o último filme. Em 2014, o próprio filho de Apted morreu, aos 47. No ano anterior, a primeira entrevistada da série morreu: Lynn Johnson, a garota que queria trabalhar na Woolworth, foi uma bibliotecária. Você pode procurar nos jornais, mas não vai achar seu obituário. Quando a St. Saviour’s School, localizada em Londres, reabriu sua biblioteca após uma grande reforma, Johnson foi homenageada com uma pequena placa. E a equipe de Apted estava lá, filmando.