Como se adapta um roteiro baseado em um livro? Você acha que todos os diálogos originais devem estar presentes? Ou será que a preocupação maior deveria ser apenas com a essência?
Akira Kurosawa se apaixonou por King Lear, de William Shakespeare, em 1970, após ler este clássico duas vezes na mesma noite. Uma semana depois, ele começou um esboço do projeto que seria levado às telas de cinema quinze anos depois.
No Japão do século XVI, Hidetora (Tatsuya Nakadai) orgulha-se de seu reino, montado com intrigas e mortes. Certo dia, ele anuncia seu desejo de partilhar suas terras entre seus três filhos, Taro, Jiro, e Saburo. Enquanto o primeiro, que é o mais velho, fica com a chefia de todo o clã, os outros dois vão ocupar dois castelos secundários. Saburo não aceita ficar para trás e logo se rebela contra seu pai, que o expulsa do reino. Pensando estar com um próspero futuro garantido, Hidetora surpreende-se ao ver que Taro e Jiro estão mais preocupados com o poder do que com seu pai. É apenas o início de um filme que trata com perfeição sobre como o poder corrompe o homem.
Como nada na vida de Kurosawa foi fácil, arranjar um financiamento para esta produção foi uma tarefa quase impossível. Após o relativo sucesso de Kagemusha no mercado japonês, a Toho não se mostrou muito animada em liberar doze milhões de dólares para aquela que seria a produção mais cara feita na história do Japão até então (soma que apenas foi superada com o boom dos estúdios Studio Ghibli e suas animações na década de 90). Segundo o diretor japonês, Ran combina caos, guerra e niilismo. O longa de 162 minutos tem um toque bastante devagar, apesar de conter algumas linhas de diálogos rápidos e um bocado de cenas de suor e sangue. Como é de costume, a história é muito bem contextualizada e orquestrada. Para não se perder no meio de tantos detalhes, o espectador deve estar bem atento aos nomes, já que as vestimentas e os rostos dos protagonistas não ajudam na diferenciação.
Como sempre digo, têm filmes estrangeiros que levariam vários prêmios da Academia caso estivessem em condições de igualdade com as produções estadunidenses. Olhando para os premiados de 1986, não teria dúvidas para entregar o prêmio de direção (cujo Kurosawa conseguiu nomeação graças a um movimento organizado por Lumet), melhor ator (Nakadai) e fotografia para este longa. Justiça feita apenas no Oscar de melhor figurino, entregue para os japoneses.
Respondendo a questão lançada no primeiro parágrafo: para obter sucesso na adaptação de um clássico é fundamental que a mão que escreve o roteiro esteja alinhada com a alma da produção e que também observe o contexto do realizador. Neste caso, Ran não poderia ser melhor: ao trazer elementos da cultura japonesa e propor uma versão oriental a história do Rei Lear, Kurosawa conseguiu emocionar e questionar o seu espectador sobre temas de grande importância, como o valor da família, o peso da traição e a disputa pelo poder.
O colorido perante a morte, os tons que antecedem o silêncio da morte e a loucura andam juntos em Ran. Imperdível, clássico e obrigatório.
NOTA: 9/10